A aplicação de sanção mais grave do
que a recomendada em procedimento administrativo-disciplinar é nula se não
for devidamente fundamentada e, pior ainda, se violar flagrantemente os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Por isso, a
Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), órgão da Secretaria de
Segurança Pública do Rio Grande do Sul, terá de reintegrar um agente que
responde na Justiça pelo crime de tortura e que, na esfera administrativa,
comprovadamente violou os deveres da função pública ao espancar um apenado.
A determinação partiu da 4ª Câmara
Criminal do Tribunal Justiça do RS, ao reformar sentença que negou a
reintegração de um agente penitenciário demitido em janeiro de 2013, depois
de se envolver em um rumoroso caso de tortura com outros servidores. O
colegiado acolheu a tese de que o estado desrespeitou o relatório do PAD, que
investigou o caso de tortura na Penitenciária Estadual de Charqueadas, e
converteu a pena de demissão simples em suspensão por 85 dias.
O relator do recurso, desembargador
Eduardo Uhlein, afirmou que o princípio da proporcionalidade é um valioso
instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por
permitir o controle da discricionariedade dos atos do poder público. E que o
Supremo Tribunal Federal já permite a análise de sua aplicação no processo
administrativo, diante das peculiaridades do caso concreto.
Nessa linha, conforme o relator, o
ato demissional desconsiderou o parecer do procurador Frederico de
Sampaio Didonet, da Procuradoria-Geral do Estado, que, alinhando-se ao relatório
da comissão processante do PAD, entendeu que o autor, de fato, teve
participação menor no episódio.
‘‘Esse voto, é certo, restou
desacolhido por maioria de 3 a 2 na sessão deliberativa da equipe de Revisão
da Procuradoria-Geral do Estado (Procuradoria Disciplinar e de Improbidade),
em 18/10/2012, sem que, entretanto, a corrente majoritária tenha externado,
em separado, a motivação necessária para justificar o afastamento do
benefício da conversão em suspensão, o que se tem por indispensável para a própria
validade da sanção mais severa e que afinal veio a ser aplicada pelo chefe do
Executivo, sem qualquer justificativa adicional’’, expressou em seu voto. O caso
O autor e mais sete agentes
penitenciários do Presídio Estadual de Charqueadas, na Região Metropolitana
de Porto Alegre, além do diretor, foram afastados de seus cargos por violação
de dever funcional em abril de 2009. No afã de descobrir como os celulares
entravam na prisão, os agentes submeteram um dos presos a sessão de tortura
na sala de Atividade de Segurança e Disciplina. Antes das agressões, eles
haviam apreendido 11 aparelhos de telefone celular em uma peça usada para
guardar produtos de limpeza no banheiro.
Para ‘‘limpar a barra’’, os
servidores falsearam os fatos no registro da ocorrência. Informaram que
tiveram de usar de ‘‘força moderada’’ para desarmar o preso, que os atacou
com um ‘‘estoque’’ — faca artesanal produzida nas prisões — após a retirada
das algemas. Segundo a narrativa, o preso foi levado até a sala de
atendimento local para simples revista corporal, após ter admitido a posse
dos celulares apreendidos.
Quando a imprensa gaúcha teve
conhecimento dos fatos, todos os servidores foram afastados, inclusive o
diretor da penitenciária, que acobertou o caso — não tomou as medidas
necessárias, como providenciar o exame do corpo de delito no apenado
torturado. Eles estão sendo processados pelo Ministério Público, em ação que
tramita na 2ª Vara Judicial da Comarca de Charqueadas. Nessa ação, o autor,
conhecido como ‘‘Alemão’’, foi apontado como um dos agentes que desferiram
vários socos no rosto e no abdômen da vítima, que estava algemada. Segundo o
MP, ele ainda teria instigado os demais denunciados à pratica de atos de
tortura.
Na esfera cível, responderam a
procedimento administrativo-disciplinar, instaurado pelo estado, por violação
a deveres funcionais previstos nos artigos 177 e 178 da Lei Complementar
10.098/94 (estatuto do funcionalismo estadual). No final da apuração
administrativa, o relatório do PAD recomendou ‘‘demissão a bem do serviço
público’’ de quatro servidores, por tortura comprovada, e ‘‘demissão
simples’’ de outros quatro, incluindo o autor, pela prática de infligir
lesões corporais. Também foi recomendada demissão do diretor, convertida em
90 dias de suspensão. Em síntese, as imputações de tortura e lesões corporais
restaram passíveis de subsunção nos artigo 191, incisos III (ofensa
física à pessoa), VII (transgressão de proibição) e XVII (outros crime contra
a administração pública) do estatuto.
Embora o PAD concluísse que o autor
não participou ativamente da tortura, dado que entrou na sala ao final da
sessão, este acabou demitido de suas funções na Superintendência dos Assuntos
Penitenciários em janeiro de 2013. Sentindo-se injustiçado, ingressou com
ação de reintegração ao cargo, alegando que sua participação se resumiu a
‘‘atos isolados e esporádicos’’, insuficientes para caracterizar o crime de
tortura. Argumentou que o relatório do PAD opinou por converter sua pena de
demissão em suspensão pelo prazo de 85 dias — o que acabou não sendo acatado
pelo estado. Logo, o estado violou o princípio da proporcionalidade, tornando
nulo o ato demissional.
Sentença improcedente
A juíza Lílian Cristiane Siman, da
5ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, observou que não cabe ao Poder
Judiciário analisar o mérito dos atos administrativos, somente os seus
requisitos formais — como legalidade e motivação. E, no caso, o autor não
trouxe aos autos nenhuma alegação de vício formal no PAD, sustentando,
apenas, a desproporção e desarrazoabilidade da aplicação da pena de demissão.
‘‘Ocorre que tal ponto diz com o
mérito do ato administrativo que, como referido, não é passível de análise
pelo Poder Judiciário, mormente quando a decisão que aplicou a penalidade
está devidamente fundamentada em provas colhidas em procedimento
administrativo que respeitou o devido processo legal. Assim, porque não
demonstrada qualquer irregularidade passível de amparar a pretensão do autor,
[ é ] de ser julgada improcedente a ação’’, sintetizou.
Fonte: Consultor Jurídico |