Artigo de Maria Sylvia Zanella Di
Pietro
A cassação de aposentadoria tem sido
prevista como penalidade nos Estatutos dos Servidores Públicos. Na esfera
federal, a Lei 8.112/1990, no artigo 134, determina que “será cassada a
aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade,
falta punível com a demissão”. A justificativa para a previsão de penalidade
dessa natureza decorre do fato de que o servidor público não contribuía para
fazer jus à aposentadoria. Esta era considerada como direito decorrente do
exercício do cargo, pelo qual respondia o Erário, independentemente de
qualquer contribuição do servidor. Com a instituição do regime previdenciário
contributivo, surgiu a tese de que não mais é possível a aplicação dessa
penalidade, tendo em vista que o servidor paga uma contribuição, que é
obrigatória, para garantir o direito à aposentadoria.
O regime previdenciário contributivo
para o servidor público foi previsto nas Emendas Constitucionais 3/1993 (para
servidores federais), 20/1998 (para servidores estaduais e municipais, em
caráter facultativo) e 41/2003 (para servidores de todas as esferas de
governo, em caráter obrigatório). No entanto, mesmo antes da instituição
desse regime, já havia algumas vozes que se levantavam contra esse tipo de
penalidade. O argumento mais forte era o de que a aposentadoria constituía um
direito do servidor que completasse os requisitos previstos na Constituição:
era o direito à inatividade remunerada, como decorrência do exercício do
cargo por determinado tempo de serviço público. Alegava-se que a punição era
inconstitucional, porque atingia ato jurídico perfeito.
Com esse argumento, algumas ações
foram propostas pleiteando a invalidação da punição, chegando, algumas delas,
ao conhecimento e julgamento do Supremo Tribunal Federal. A Corte não acolheu
aquele entendimento. No MS 21.948/RJ, alegava-se a inconstitucionalidade dos
incisos III e IV do artigo 127, da Lei 8.112/90, que previam as penas de
demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, sob o argumento
de que, quando aplicada a pena de demissão, o servidor já havia completado o
tempo para aposentadoria. O argumento foi afastado, sob o fundamento de que o
artigo 41, parágrafo 1º, da Constituição prevê a demissão; e que a lei prevê
inclusive a cassação de aposentadoria, aplicável ao inativo, se resultar
apurado que praticou ilícito disciplinar grave, quando em atividade. O mesmo
entendimento foi adotado no MS 22.728/PR, no qual foi afastado o argumento de
que a pena de cassação de aposentadoria é inconstitucional por violar ato
jurídico perfeito.
Depois da EC 20/98, o STF proferiu
acórdão no MS 23.299/SP. O relator foi o ministro Sepúlveda Pertence, que não
enfrentou o tema diante da mudança no regime jurídico da aposentadoria e
adotou a mesma tese já aplicada aos casos precedentes. Igual decisão foi
adotada no ROMS 24.557-7/DF. No julgamento do AgR no MS 23.219-9/RS, o relator
anotou que, não obstante o caráter contributivo de que se reveste o benefício
previdenciário, o STF tem confirmado a possibilidade de aplicação da pena de
cassação de aposentadoria. O julgado baseou-se, ainda uma vez, no precedente,
relatado pelo Min. Pertence.
Mais recentemente, novo
posicionamento foi adotado em acórdão proferido pela 2ª Turma (RE 610.290/MS,
rel. min. Ricardo Lewandowski), em cuja ementa consta que: “o benefício
previdenciário instituído em favor dos dependentes de policial militar
excluído da corporação representa uma contraprestação às contribuições
previdenciárias pagas durante o período efetivamente trabalhado.” Nesse caso,
alegava-se que era inconstitucional o dispositivo de lei estadual que
instituiu o benefício previdenciário aos dependentes de policial militar
excluído da corporação. A decisão foi pela constitucionalidade do
dispositivo, por se tratar de benefício previdenciário, de caráter
contributivo. Ponderou o ministro que “entender de forma diversa seria
placitar verdadeiro enriquecimento ilícito da Administração Pública que, em
um sistema contributivo de seguro, apenas receberia as contribuições do
trabalhador, sem nenhuma contraprestação”.
Note-se que o acórdão trata da
cassação da pensão dos dependentes e não da cassação de aposentadoria. O
órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão proferido no
MS 2091987-98.2014.8.26.0000, entendeu, por maioria de votos, que a cassação
de aposentadoria se tornou incompatível com a instituição do regime previdenciário.
A meu ver, adotou a tese correta.
É possível reconhecer que a regra que
permite a cassação de aposentadoria gera dois tipos opostos de resistência:
a) de um lado, a repulsa pela penalidade em si, que é aplicada quando o
inativo já está com idade avançada e com grande dificuldade ou mesmo
impossibilidade de encontrar outro trabalho, seja no setor público, seja no
setor privado; no acórdão mencionado, proferido pelo Órgão Especial do TJSP,
o inativo já tinha se aposentado compulsoriamente por ter completado 70 anos
de idade; b) de outro lado, a extinção da penalidade de cassação de
aposentadoria por ilícito praticado quando o inativo ainda estava em
atividade gera outro tipo de repulsa, que é o fato de o servidor acabar não
sendo punido na esfera administrativa (ainda que possa ser punido na esfera
penal e responder civilmente pelos danos causados ao erário, inclusive em
ação de improbidade administrativa).
Há que se ponderar que, em se
tratando de pena de demissão, não há impedimento a que o servidor volte a
ocupar outro cargo público, uma vez que preencha os respectivos requisitos,
inclusive a submissão a concurso público, quando for o caso. Se assim não
fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito
brasileiro. E não há dúvida de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou
função, o tempo de serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será
computado para fins de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo
40, parágrafo 9º, da Constituição. Mesmo que outra atividade seja prestada no
setor privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de
contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo
INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201,
parágrafo 9º, da Constituição.
Façamos um paralelo com o trabalhador
filiado ao Regime Geral de Previdência Social. O que acontece quando demitido
do emprego por justa causa, por ter praticado falta grave? O trabalhador tem
dois tipos de vínculos: a) um vínculo de emprego com a empresa, regido pela
CLT; e b) um vínculo de natureza previdenciária, com o INSS. Se for demitido,
mas já tiver completado os requisitos para aposentadoria, ele poderá requerer
o benefício junto ao órgão previdenciário. Se não completou os requisitos,
ele poderá inscrever-se como autônomo e continuar a contribuir até completar
o tempo de contribuição; ou poderá iniciar outro vínculo de emprego que torne
obrigatória a sua vinculação ao regime de seguridade social; ou poderá
ingressar no serviço público, passando a contribuir para o Regime Próprio,
também em caráter obrigatório. De qualquer forma, fará jus à já referida
contagem do tempo de contribuição anterior. Para fins previdenciários, é
absolutamente irrelevante saber quantos empregos a pessoa ocupou e quais as
razões que o levaram a desvincular-se de uma empresa e vincular-se a outra.
Se for demitido, com ou sem justa causa, nada pode impedi-lo de usufruir dos
benefícios previdenciários já conquistados à época da demissão.
A mesma regra aplica-se aos
servidores públicos celetistas e temporários, que são necessariamente
vinculados ao Regime Geral, nos termos do artigo 40, parágrafo 13, da
Constituição. Se forem demitidos por justa causa, porque praticaram ilícito
administrativo, essa demissão não os fará perder os benefícios
previdenciários já conquistados ou a conquistar, mediante preenchimento do
requisito de tempo de contribuição exigido em lei. Com relação ao servidor
efetivo, não é e não pode ser diferente a conclusão, a partir do momento em
que se alterou a natureza de sua aposentadoria. Ele também passa a ter dois
tipos de vínculos: um ligado ao exercício do cargo e outro de natureza
previdenciária.
Antes da instituição do Regime
Próprio do Servidor, a aposentadoria era um direito decorrente do exercício
do cargo, financiado inteiramente pelos cofres públicos, sem contribuição do
servidor, da mesma forma que outros direitos previstos na legislação
constitucional e estatutária, como a estabilidade, a remuneração, as
vantagens pecuniárias, as férias remuneradas. Note-se que a pensão, ao
contrário dos outros direito ligados ao cargo, já tinha natureza
previdenciária contributiva, desde longa data.
Ocorre que houve declarada intenção
do governo de aproximar o regime de aposentadoria do servidor público e o do
empregado do setor privado. Tanto assim que o artigo 40, parágrafo 12, da
Constituição manda aplicar ao Regime Próprio, no que couber, os “requisitos e
critérios fixados para o regime geral de previdência social”.
Sendo de caráter contributivo, é como
se o servidor estivesse “comprando” o seu direito à aposentadoria; ele paga
por ela. Daí a aproximação com o contrato de seguro. Se o servidor paga a
contribuição que o garante diante da ocorrência de riscos futuros, o
correspondente direito ao benefício previdenciário não pode ser frustrado
pela demissão. Se o governo quis equiparar o regime previdenciário do
servidor público e o do trabalhador privado, essa aproximação vem com todas
as consequências: o direito à aposentadoria, como benefício previdenciário de
natureza contributiva, desvincula-se do direito ao exercício do cargo, desde
que o servidor tenha completado os requisitos constitucionais para obtenção
do benefício.
Qualquer outra interpretação leva ao
enriquecimento ilícito do erário e fere a moralidade administrativa. Não tem
sentido instituir-se contribuição com caráter obrigatório e depois frustrar o
direito à obtenção do benefício correspondente. Assim, se a demissão não pode
ter o condão de impedir o servidor de usufruir o benefício previdenciário
para o qual contribuiu nos termos da lei (da mesma forma que ocorre com os
vinculados ao Regime Geral), por força de consequência, também não pode
subsistir a pena de cassação de aposentadoria, que substitui, para o servidor
inativo, a pena de demissão.
Não se pode invocar, para afastar
essa conclusão, o caráter solidário do regime previdenciário. Não há dúvida
de que a solidariedade é uma das características da previdência social,
quando comparada com a previdência privada. Podemos apontar as seguintes
características do seguro social e que o distinguem do seguro privado: a)
obrigatoriedade, pois protege as pessoas independentemente de sua
concordância, assegurando benefícios irrenunciáveis; b) pluralidade das
fontes de receita, tendo em vista a impossibilidade dos segurados manterem,
por si, o sistema e cobrirem todos os benefícios; daí a ideia de
solidariedade, que dá fundamento à participação de terceiros que não os
beneficiários no custeio do sistema; c) desproporção entre a contribuição e o
benefício, exatamente como decorrência da pluralidade das fontes de receita;
d) ausência de lucro, já que é organizada pelo Estado.
O fato de ser a solidariedade uma das
características do seguro social não significa que os beneficiários não
tenham direito de receber o benefício. Eu diria que a solidariedade até
reforça o direito, porque ela foi idealizada exatamente para garantir o
direito dos segurados ao benefício. De outro modo, não haveria recursos
suficientes para manter os benefícios da previdência social. A solidariedade
significa que pessoas que não vão usufruir do benefício contribuem para a
formação dos recursos necessários à manutenção do sistema de previdência
social; é o caso dos inativos e pensionistas e também dos servidores que não
possuem dependentes mas têm que contribuir necessariamente para a manutenção
do benefício; são as hipóteses em que à contribuição não corresponde qualquer
benefício. Mas para os servidores assegurados, à contribuição tem
necessariamente que corresponder um benefício, desde que preenchidos os
requisitos previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional. A
regra da solidariedade convive (e não exclui) o direito individual ao
benefício para o qual o servidor contribuiu.
A solidariedade não afasta o direito
individual dos beneficiários, já que o artigo 40 da Constituição define
critérios para cálculo dos benefícios, a saber, dos proventos de
aposentadoria e da pensão, nos parágrafos 1º, 2º e 3º. Não há dúvida de que a
contribuição do servidor, quando somada aos demais requisitos
constitucionais, dá direito ao recebimento dos benefícios.
O já transcrito argumento utilizado
pelo Min. Lewandowski com relação à pensão é inteiramente aplicável à
aposentadoria. Note-se que o caráter contributivo e retributivo do regime
previdenciário do servidor também foi ressaltado na ADI nº 2010. Para o
Relator, a “existência de estrita vinculação causal entre contribuição e
benefício põe em evidência a correção da fórmula, segundo a qual não pode
haver contribuição sem benefício”.
A relação entre benefício e
contribuição decorre de vários dispositivos da Constituição, mas consta
expressamente do artigo 40, parágrafo 3º. O que ocorre é que a legislação
estatutária não se adaptou inteiramente ao novo regime de aposentadoria e
continua a prever a pena de cassação de aposentadoria, sem levar em
consideração que ela se tornou incompatível com o regime previdenciário. Além
disso, há uma resistência grande dos entes públicos em abrir mão desse tipo
de penalidade, seja por não terem tomado consciência das consequências de
alteração do regime do servidor, seja por revelarem inconformismo com a
incompatibilidade da referida penalidade com o regime previdenciário
contributivo agora imposto a todos os servidores.
Mas o fato é que a pena de cassação
de aposentadoria deixou de existir para cada ente federativo a partir do
momento em que, por meio de lei própria, instituíram o regime previdenciário
para seus servidores. Isto não impede que o servidor responda na esfera criminal
e no âmbito da lei de improbidade administrativa e que responda pela
reparação civil dos prejuízos eventualmente causados ao erário. A cassação de
disponibilidade continua a existir, porque a disponibilidade continua a ser
uma decorrência da estabilidade do servidor, independentemente de qualquer
contribuição previdenciária.
* Maria Sylvia Zanella Di Pietro é
advogada e professora titular aposentada de Direito Administrativo da
Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Consultor Jurídico |